sábado, 1 de setembro de 2012




Sob a agulha havia um disco. Soprei a poeira que o cobria, brandi o indicador direito sobre o vinil e a voz estrangulada de Enigma cuspiu do vazio: "Mea culpa." Engoli seco. Em meus lábios, a saliva endureceu. Tinha consistência de concreto. Uma espécie de massa adesiva homogeneizava a língua, formando uma prensa de cimento capaz de passar em qualquer teste de cisalhamento. Deixei que a lâmina deslizasse até o fim. "Realize minhas mais loucas fantasias" - prosseguiu a gregoriana melodia. Gosto das paixões que arrebatam. Primeiro a alma, e, logo mais, as saias. Preparo um café e dos meus quatro janelões em forma de arco, a cidade inteira aparece aos meus pés, como um parque fantasmagórico, usando nos ombros o xale negro de um luto que não combina com ela. De seus olhos, escorre uma chuva pacífica, fina, colorida. Dessas de deixar ruas e avenidas da alma toda diamantadas. Vigio-a como um sentinela. Quando achei que o mundo fosse acabar à minha volta, os astros, num ato de misericórdia livraram-se de sua cólera e tentam salvar o que ainda resta. Formam-se poças. A represa em mim precisa do toque, que faça escorrer o mel colhido em jardins perdidos, os que medram nas encostas e subúrbios, acima das nuvens, debaixo dos olhos. Flores que ofereciam para ninguém o pólen que acabei colhendo no fole cultivado no peito. Quebra-se a dor que manteve a forma desse desejo oculto e que agora é explícito como o timbre de um canto de cátedra que desperta pétalas. Desta vez, são de outra natureza, mais carnudas, cheias de viço como trigo plantado no tesão das tardes. Quando estávamos juntos, grudados num campo devastado pela esperança de uma chuva que se recusava a chegar. Éramos ainda o deserto até que viestes com teus lírios que pareciam, de longe, de plástico, iguais aos outros. Mas era tu e teu coração de veludo, que me cobriu também de rosas e de algumas plantas desconhecidas, talvez as que vieram de um paraíso ainda não inventado pelas poetisas. Desmaio de prazer nessa loucura sem sentido, em que nos agarramos como dois amores brutos, que enfim se encontram e temem diante do calor do dia que despenca em nossas costas, rompendo todos os selos. Grude que fica desse som noturno, essa alvorada tardia de cristais, esse diamante de planetas distantes, onde as estrelas pousam sua luz e onde me acabo, com esse sentimento que é puro orgasmo. Sorri abertamente às suas costas, quando passastes por mim, não para fazer questão de ser visto mas para certificar-se de que eu não o havia esquecido. Tinha o espírito crescido, contudo, uma aura insatisfeita. Tua expressão revelava soberba, na textura da insegurança, sua forma avessa. Agora, sem aquela arrogância que tornastes sua inseparável companheira. Meu corpo não pode. É possível que não tenhas visto, estavas de costas. Debaixo daquela tempestade, minha alma o abraçou até perder as forças. Tarde. Outubro. Segunda-feira. Passeio os olhos pelo bico chaleira. A água ferve. Com ela, assovio minha espera. O fogo da paixão amolece-nos com o calor que entorna. Digo teu nome e toda poesia descamba sobre mim como chuva luminosa.



Lídia Martins








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